segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

1917 - Filme de Sam Mendes indicado ao Oscar 2020 retrata o alto custo do heroísmo em jornada emocional e autêntica


Não existe relação mais duradoura do que a entre guerras e a indústria audiovisual. Grandes conflitos já foram retratados de todas as formas possíveis - de ensaios sobre a condição humana na Guerra do Vietnã às incontáveis fases de desembarcar nas praias do Dia D nos games. É isso que torna o indicado ao Oscar 1917, de Sam Mendes, tão impressionante. Ele traz autenticidade e emoção a um embate tão complexo quanto a Primeira Guerra Mundial.

Os soldados Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay) são escolhidos pelo exército britânico para atravessar a Terra de Ninguém em menos de um dia para entregar uma mensagem a um batalhão aliado, avisando-o de uma armadilha. O fracasso custaria a vida de 1600 soldados, incluindo o irmão de Blake. É uma premissa bastante “vídeo-gamística”, uma quest de objetivo simples e desafios claros. O longa não tem medo de assumir que sua narrativa se espelha nos games - e nem deveria. Afinal do primeiro Medal of Honor (1999), criado por Steven Spielberg, aos inúmeros Call of Duty e Battlefield, os jogos tiveram que desenvolver linguagem própria para contar histórias de guerra em detalhes e imersão não permitidos por nenhum outro meio. É certo que houve bastante influência de filmes clássicos nesse processo, mas faz todo o sentido que eventualmente os games retornassem o favor. É justamente essa estrutura de missão que faz a corrida contra o tempo funcionar, que segue até mesmo as noções de checkpoints para dar um respiro entre os momentos de ação intensa.

Uma crítica comum aos jogos de guerra é a fetichização da violência (principalmente pelo fato de que é o jogador que puxa o gatilho). 1917 segue no caminho contrário, e dá muito mais destaque ao custo humano do conflito do que ao sangrento espetáculo. Com o relógio correndo, Schofield e Blake correm pelas trincheiras aliadas para enfim começarem sua jornada. Mas cada pequena decisão impulsiva que precisam tomar - como seguir pela contramão, ou entrar em áreas restritas para suas patentes - são o suficiente para fazer até seus colegas militares se voltarem contra eles e puxarem brigas. Naquela altura, faltando mais de um ano para o fim do conflito, a Primeira Guerra Mundial já tinha deixado incontáveis vítimas e um rastro de destruição pela Europa. Os grandes tiroteios haviam esfriado, com ambos os lados enfurnados em trincheiras gélidas tão mortais quanto os campos de batalha, sem suprimentos ou atenção médica.

É evocando esse contexto histórico através da sutileza que o impacto emocional do filme se estabelece. Quando a dupla sobe à Terra de Ninguém, a vastidão da ruína fica clara enquanto atravessam o campo lamacento e devastado em um semi-silêncio opressor, apenas com alguns toques da sombria trilha de Thomas Newman. O longa brilha nesses momentos que desperta o horror da guerra sem se tornar explicativo. A obra é um exercício em evitar a obviedade do subtexto e os atores entendem isso muito bem. Chapman e MacKay se entregam fisicamente aos papéis, algo ainda mais exigente por ter sido rodado em longos takes para criar a impressão de plano-sequência. Mas quem melhor representa a ideia é Richard Madden. O ator de Game of Thrones tem uma pequena, mas importante, participação na obra. Mesmo a conclusão, que poderia ser explosiva e catártica, investe em pontuar a dor e a humanidade de forma bastante contemplativa, sem recorrer a exageros.

O que complementa muito bem a ação e emoção de 1917 é que Mendes escolhe conduzir a história através da ilusão de um plano-sequência. Mesmo que os cortes não sejam bem escondidos, o diretor subverte a fluidez da técnica para garantir que o espectador sinta o mesmo sufoco que os soldados que tentam conquistar um objetivo impossível. A câmera entende a dualidade natural de obras de guerra, que alternam entre discurso humanitário e um certo voyeurismo pela violência. Dessa forma - novamente lembrando a conexão com os games - o espectador é colocado nos ombros de Schofield durante um duelo com um atirador de elite, mas também passeia pelos cenários, entra nas trincheiras, no lamaçal e na traseira de um caminhão militar. A todo momento há algo de interessante na tela, mesmo nos momentos de silêncio narrativo. Isso é triunfo de Roger Deakins (Blade Runner 2049), um dos melhores diretores de fotografia da atualidade. 1917 sequer chega a ser um de seus trabalhos mais notáveis, e mesmo assim é de um altíssimo nível técnico e artístico. Uma batalha noturna nas ruínas de uma cidade francesa, parcialmente iluminada pela destruição do fogo e a luz momentânea de sinalizadores, são algumas das imagens mais marcantes e belas (de uma forma deturpada) dentre os filmes que disputam Melhor Fotografia no Oscar 2020.

Retratar a Primeira Guerra Mundial não é tarefa fácil. Diferente de sua sucessora, é um conflito marcado pela confusão, mudanças políticas questionáveis e poucos “vilões”. Não há heroísmo nas trincheiras e na Terra de Ninguém e 1917 retrata isso muito bem ao demonstrar em detalhes o alto custo humano por trás de todo combate histórico. Após quase morrerem soterrados logo no início da jornada, Schofield e Blake refletem sobre o máximo de honra que receberão por colocarem suas vidas em risco: uma medalha. “É só um pedaço de lata. Não faz diferença pra ninguém”, reclama Schofield. “Não é só um lata. Também tem um pedaço de fita”, retruca Blake. Da forma que o longa imerge o público nos mesmos maus bocados que a dupla, é difícil sair sem concordar que medalha alguma vale tanto sofrimento.

Autor: Arthur Eloi 

Fonte: https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/oscar-1917-positiva

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Dois Papas: justos e pecadores


Por Carlos Caldas 

O cineasta brasileiro Fernando Meirelles já tem nome consagrado na história do cinema mundial. Não sem razão foi indicado aos prêmios mais importantes da sétima arte, como a Palma de Ouro no Festival de Cannes por Ensaio sobre a cegueira (2008), adaptação do romance homônimo de José Saramago; por duas vezes ao BAFTA, o “Oscar britânico”, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro por Cidade de Deus (2003) – por este mesmo filme foi indicado ao Oscar de Melhor Diretor –, e na categoria Melhor Diretor por O jardineiro fiel (2006). Agora, com Dois Papas, produção da Netflix de 2019, Meirelles se superou.

O filme é adaptação do livro Dois Papas: Francisco, Bento e a decisão que abalou o mundo, do escritor neozelandês Anthony McCarten (Editora BestSeller). Livro e filme narram os bastidores de um fato impressionante acontecido em 2013: o então Papa Bento XVI, o alemão Joseph Ratzinger, renunciou ao papado, a posição de liderança máxima da Igreja Católica Apostólica Romana, posição esta que, em tese, é vitalícia – em tese, porque a história registra que os papas Ponciano (em 235), outro Bento, o IX (em 1045), Celestino V (em 1294)(1) e Gregório XII (em 1415) renunciaram. Ou seja, a renúncia de um papa é um fato extremamente raro, mas não impossível de acontecer.

Ratzinger sucedeu a João Paulo II no “trono de São Pedro”. Vários vaticanistas, como o norte-americano John Allen Jr(2), observaram que por conta de debilidades físicas sofridas por Karol Wojtyla em seus últimos anos de vida, e por conta de seu poder de articulação na Cúria Romana, Ratzinger já era o papa de facto. De modo que não foi surpresa quando o alemão foi eleito papa em 2005. Surpresa foi quando, oito anos depois, anunciou ao mundo a sua renúncia. Esta surpresa foi seguida de outra, ou melhor, de outras: ele foi sucedido pelo argentino Jorge Mario Bergoglio, uma surpresa tripla, por ser o primeiro papa proveniente das Américas, o primeiro papa jesuíta e o primeiro a adotar o nome de Francisco (o que é no mínimo surpreendente, mesmo paradoxal, levando em conta que o Povorello de Assis talvez seja o santo mais popular do hagiográfico romano).

O filme de Meirelles narra então a curiosa “estória” dos encontros e diálogos entre dois homens que discorda(va)m em quase tudo um do outro, além de serem totalmente diferentes no modo de ser: de um lado, Ratzinger, intelectual sofisticado, dono de grande inteligência filosófica, capaz de articular conceitos abstratos com muita facilidade, teólogo de mente arguta, extremamente culto, de personalidade introvertida, pessoa de difícil relacionamento, isento quase totalmente de simpatia e de empatia, duro, intolerante com quem tem opiniões diferentes da sua, sem abertura para a alteridade. Não é de se admirar que tenha sido apelidado de “rottweiler de Deus” (o filme mostra o próprio Ratzinger fazendo referência a esta maneira como alguns o chamavam). Não é de se admirar também que tivesse ocupado a função de Prefeito para a Congregação de Doutrina da Fé, órgão do Vaticano que em épocas passadas era conhecido como Santa Inquisição. Do outro lado, Bergoglio, homem simples, extrovertido, simpático, de grande experiência pastoral junto ao povo pobre da cidade de Buenos Aires, dotado de uma facilidade muito grande de fazer amizades – o filme mostra isso em uma cena quando Bergoglio está se preparando para voltar de Roma para Buenos Aires e ganha de presente de um jardineiro do Castelgandolfo, a residência de verão dos papas, uma muda de orégano. No filme, Ratzinger é vivido por Anthony Hopkins (com uma lente de contato castanha) e Bergoglio é interpretado por Jonathan Pryce. É simplesmente impossível dizer qual dos dois está melhor, porque são duas interpretações muitíssimo boas. Ambos estão magníficos em seus papeis.

O ponto forte do filme está nos diálogos entre o então Cardeal Bergoglio e Bento XVI, diálogos estes interessantíssimos e inteligentíssimos. Um tanto do que o filme apresenta é ficção de McCarten e/ou de Meirelles, porque o papa alemão nunca conversou com Bergoglio a respeito de sua decisão de renunciar ao papado. Não combina com o perfil de Ratzinger de jeito nenhum querer saber a opinião de alguém sobre uma decisão sua, e menos ainda de uma pessoa tão diferente dele como Bergoglio. É preciso lembrar do óbvio: Dois Papas é um filme, não um documentário. Evidentemente há verdade factual histórica no filme, mas há também recriação e licença poética da parte do autor do livro, do roteirista e do diretor.

O filme apresenta com toda clareza o que os leitores da Bíblia sabem muito bem: “todos pecaram”. Em uma sequência tocante e comovente, com um longo flashback que apresenta Bergoglio como padre jovem em Buenos Aires (Bergoglio jovem é interpretado pelo ator argentino Juan Minujín), este confessa para o papa Bento sobre a postura de subserviência que adotou para com as autoridades do governo militar na Argentina, uma atitude de contemporização da qual veio a se arrepender amargamente. E Bento confessa a atitude complacente que teve para com padres e bispos acusados de escândalos sexuais: ao invés de instituir disciplina eclesiástica, preferiu transferi-los de paróquias e acobertar os casos. Bergoglio o repreende dizendo que ao agir assim Ratzinger se preocupou com o ofensor, mas não com as vítimas. Enfim, o filme mostra como Lutero estava certo ao afirmar que o cristão é simul justus et pecattor. Mas não há no filme nenhuma referência ao envolvimento do jovem Joseph Ratzinger com a Hitlerjugende, a “Juventude Hitlerista”. É bem verdade que a participação neste movimento era obrigatória na Alemanha. Mas Meireles optou por não tocar neste assunto. De igual maneira, o filme apenas arranhou a questão do que ficou chamado de VatiLeaks, documentos e cartas de altas autoridades do Vaticano que “vazaram” para a imprensa por obra de Paolo Gabriele, que à época era secretário de Bento XVI.

Enfim, o filme é uma obra ficcional que apresenta dois modelos de igreja católica: de um lado, Bento XVI como representante e símbolo de uma postura conservadora, tradicionalista, até mesmo engessada, fechada a mudanças, e do outro, Francisco, representando a mudança, a renovação, a preocupação maior com a pessoa humana que com a instituição. O filme humaniza, por assim dizer, os dois papas. A cena de Bergoglio tentando ensinar um enrijecido e desajeitado Ratzinger a dar uns passos de tango é simplesmente impagável. A produção ficou ótima. Como a equipe não recebeu autorização para filmar na Capela Sistina, houve um trabalho primoroso e extremamente detalhado de recriação daquele tão famoso ambiente. A fotografia do filme também ficou muitíssimo boa, especialmente as cenas em Castengandolfo.

O filme tem rendido polêmicas. Não poucas por esquecimento da parte dos críticos do já mencionado fato de que Meireles produziu um filme, não um documentário. Para quem não o assistiu, fica a dica: vale a pena ver.

Notas 

1. No Canto III do Inferno, da Divina Comédia de Dante Alighieri o poeta vê um grupo de condenados que viveram sem procurar fazer o bem e sem procurar fazer o mal. Neste grupo o poeta florentino situa o papa Celestino. 

2. Há pelo menos três obras de John Allen Jr disponíveis em português: Conclave, O livro de ouro dos papas e Dez coisas que o Papa Francisco nos quer dizer. 

Autor: Carlos R. Caldas Filho - É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/conteudo/dois-papas-justos-e-pecadores

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

A crítica de Coringa e seus limites



Gabriel Zacarias 

Atualmente em cartaz, o filme Coringa, de Todd Phillips, foi muito bem recebido por público e crítica especializada. Tem sido, ademais, entendido por muitos como um filme crítico, que exprimiria uma oposição à ordem neoliberal. O filme é bastante distinto dos tantos filmes de super-heróis que são anualmente produzidos em Hollywood. Não há personagens com superpoderes, e poucas cenas de ação. Opta-se pelo drama psicológico. A narrativa é centrada na biografia do protagonista, que desta feita não é o herói, mas sim o vilão. Mantendo estrutura narrativa tradicional e tendo como eixo a identificação com o protagonista, constrói efetivamente empatia com a personagem desajustada de Arthur Flecker. Essa empatia, porém, não é acompanhada de elaboração e a crítica do filme esbarra nos limites do imaginário atual. Não rompe com a domesticação neoliberal da política e figura o coletivo apenas como desordem.

Inteiramente centrado na construção de um protagonista social e psicologicamente desajustado que tende em direção à violência, o filme de Todd Phillips carrega fortes marcas dos filmes iniciais de Martin Scorsese. A escolha de Robert De Niro para interpretar o apresentador televisivo Murray Franklin cumpre aqui uma função de citação. De Niro protagonizou muitos dos primeiros sucessos de Scorsese, e sua presença em Coringa evoca sobretudo dois filmes do diretor norte-americano: Taxi Driver (1976) e O rei da comédia (1983). Há muitas semelhanças entre esse último e o filme de Phillips. Em O rei da comédia, De Niro interpreta Rupert Pupkin, um indivíduo solitário que, assim como Arthur Flecker, mora com a mãe e sonha em ser um comediante famoso. Fã de um consagrado apresentador de talk show, Jerry Langford, interpretado no filme por Jerry Lewis, Pupkin encena em sua própria casa um talk show imaginário – de maneira semelhante ao que faz Flecker quando se prepara para ir à televisão. E assim como Flecker, que se imagina sendo acolhido e abraçado por Franklin, Pupkin se imagina sendo recebido por Langford, que o reconhece por sua genialidade. Em ambos os casos, a figura televisiva substitui o pai ausente. A escolha por apresentadores de talk show não é casual. Trata-se de um programa cujo formato encena o diálogo, justamente o diálogo que está ausente na vida daqueles que se prostram diante do ‘monólogo sem réplica’ da televisão. O filme é ambientado no tempo passado do broadcasting e provavelmente teria que ser repensado se ambientado nos tempos da interação virtual. Naquela época, quando havia um controle muito estrito dos meios de comunicação, o cinema imaginou por diversas vezes o momento disruptivo no qual alguém conseguiria driblar as barreiras das grandes emissoras e transmitir uma imagem indesejada (imaginação nem sempre distante da realidade, atentados políticos acontecendo por vezes perante as câmeras). Um dos tratamentos do tema se deu na representação de personagens inadaptados que projetam a redenção de suas angústias em um ato violento – caso justamente de Taxi Driver. E é esse mesmo motivo que vemos reencenado em Coringa. De Niro, algoz dos filmes de Scorsese, passa agora ao papel da vítima, em um atentado à moda antiga.

Phillips ambienta seu filme em uma época, a virada dos anos 1970 para os anos 1980, e apoia-se sobre o cinema dessa época. Ele escolhe uma vertente em oposição à outra. Opta pela psicologia do indivíduo e pelo assassinato da celebridade, e não pela narrativa conspiratória e pelo assassinato político. Analisando o cinema de então, Fredric Jameson havia notado que a ascensão das narrativas conspiratórias era sintomática de uma falência na compreensão da totalidade. Enquanto a economia unificava o globo sob um mesmo ‘sistema-mundo’, a incapacidade de apreender uma realidade social tão ampla e tão complexa se manifestava nas figurações conspiratórias, que constroem relações de sentido paranoicas e simplificadas. Um exemplo podia ser encontrado no filme Blow Out (1981) de Brian De Palma, releitura do clássico Blow Up (1967) de Michelangelo Antonioni. De Palma substituía a reflexão paciente sobre a relação entre a imagem e o real, presente no original, por uma narrativa conspiratória na qual o mundo não podia mais abrigar a verdade – à representação sobrava apenas o lugar do entretenimento. Em certo momento de Coringa, os letreiros de uma sala de cinema nos indicam que Blow Out está em cartaz.

 O filme de Phillips, porém, parece ter pouco em comum com o filme de De Palma, e a referência a Blow Out talvez sirva mais para indicar as balizas cronológicas da narrativa. Diferentemente dos habituais filmes sobre Batman, Coringa não é ambientado em uma cidade imaginária e de temporalidade imprecisa. Pelo contrário, a Gotham City que vemos na tela é de maneira evidente a Nova York do início dos anos 1980. A escolha não é casual: trata-se do momento histórico de ascensão do neoliberalismo. Momento de falência do Estado e corte dos serviços públicos – como o do serviço de assistência psiquiátrica do qual se beneficiava Flecker – e da projeção política de figuras oriundas do mundo empresarial – como Thomas Wayne, que se propõe a salvar a cidade lançando-se para prefeito. Nesse sentido, há uma proximidade evidente entre a personagem de Wayne e o atual presidente dos EUA, Donald Trump. Foi justamente nesse contexto que Trump se projetou como figura pública, como empresário que propagandeava suprir as deficiências do poder público nova iorquino. Apesar disso, a caracterização da personagem de Thomas Wayne não é propriamente negativa. Mesmo quando Wayne agride Arthur, há justiça nessa agressão. Ele está protegendo seu filho, como fará novamente na cena de seu assassinato – atitude contrária à da mãe de Arthur, que não o protegeu dos abusos do padrasto. Ademais, Wayne se protege com as próprias mãos. Não solicita ajuda de seguranças ou do poder policial, como poderia se esperar por parte de um bilionário. Ele é um sujeito forte e seguro – o exato oposto da personalidade reticente e da corporeidade esquálida de Arthur. Ele encarna a figura do vencedor, aquele que triunfa na competição da sociedade liberal porque tem força e talento para triunfar. Essa caracterização é toda centrada no indivíduo, apagando-se as mediações sociais. Se Wayne se escondesse por trás de policiais e seguranças, veríamos o aparato policial como funcional para a manutenção do poder de classe. Se Wayne tivesse usado sua influência para internar injustamente a mãe de Arthur em uma instituição psiquiátrica, veríamos o poder médico sendo usado como instrumento para garantir uma dominação de gênero. Mas o filme não toma esse caminho. Prefere manter todas as narrativas com certo grau de incerteza e apresentar aquele que está no topo da hierarquia social como forte e dominador, como se seu triunfo fosse oriundo de características individuais e não de uma organização social. Assim, por exemplo, nada se diz sobre a origem da riqueza de Wayne, e tampouco sobre seu projeto político. O descontentamento da população para com ele é motivado por uma gafe, uma fala infeliz na televisão. A partir daí, passa a ser tratado de fascista – dando-se a sensação de que uma acusação símile é sempre vazia.

A manifestação popular entra, portanto, em cena como ressentimento vazio – o ressentimento contra aqueles que “conseguiram ser algo” (“who made something out of themselves”, na fala de Wayne). O que é mimetizado aqui é o movimento Occupy Wall Street, a “revolta dos 99%”, consolidado no atual imaginário norte-americano como figuração da insatisfação popular. Em uma projeção retrospectiva que joga para o passado as figurações da atualidade, as máscaras de palhaço vêm substituir as máscaras de Guy Fawkes, tornadas comuns em protestos após o sucesso do filme V de vingança (2006) e de sua adoção pelo coletivo hacker Anonymous. E no movimento circular entre representação e realidade, não surpreende que máscaras do novo Coringa comecem a aparecer em manifestações populares. Há no filme a intenção de criar um ícone de contrapoder, associando a personagem dos quadrinhos à insatisfação popular. Mas sua elaboração permanece demasiado precária (como era igualmente precária, aliás, a demanda dos 99%).

Aqui nos aproximamos das principais limitações críticas do filme, que são também aquelas de nosso imaginário atual. A política é reduzida à escala doméstica, ao passo em que se perdem as figurações coletivas. O filme produz empatia com a personagem de Arthur Flecker, e torna-nos sensíveis a suas agruras. Mas as mazelas sofridas pela personagem não remetem, em última instância, à ordem social, e sim ao âmbito familiar (sobretudo a partir do momento em que se revelam a loucura da mãe e os abusos do padrasto). Ademais, aquilo que se constrói como identificação com a personagem não pode ser estendido para o âmbito coletivo. Não há articulação entre o protagonista e a massa como personagem. Ou melhor, há apenas uma, que se dá sob a forma da identificação espetacular. A turba se identifica com Coringa como antes Arthur se identificara com Franklin. A identificação espetacular do ser comum com o vivido aparente parece ser hoje a única forma de articulação entre o individual e o social que conseguimos figurar.

Em resumo, a empatia habilmente construída em torno da personagem principal não é extensível à revolta coletiva. A revolta é inteiramente desprovida de razão. É como se a revolta só pudesse existir como ausência de sentido. E como se a coletividade só pudesse figurar como destruição e nunca como construção. “Não há sociedade, apenas pessoas”. O famoso dístico de Margareth Thatcher não é apenas um lema político. Reconsiderado após trinta anos de neoliberalismo, revela uma significação cultural profunda. Designa a impossibilidade de figuração positiva da coletividade. Apenas o individual é figurável. O coletivo equivale, necessariamente, à desordem. A ideologia neoliberal, em inversão cínica, faz do coletivo o oposto do social. Apesar das intenções que possa ter tido Phillips, ao ambientar seu Coringa na Nova York de 1980, seu filme não foge à regra. Sua crítica do neoliberalismo é ainda uma reiteração dos pressupostos ideológicos neoliberais. Manifesta assim um ponto de inflexão unidimensional do imaginário presente. Ao mesmo tempo em que as políticas neoliberais são amplamente sentidas como nefastas, figurações alternativas permanecem raras.

GABRIEL ZACARIAS é professor de História da Arte da Unicamp 

Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/coringa-e-seus-limites/