Uma breve incursão na história dos termos ajudará
a fixar o momento do surgimento dos direitos humanos.
As pessoas do século XVII não usavam frequentemente
a expressão “direitos humanos” e, quando o faziam, em
geral queriam dizer algo diferente do significado que hoje
lhe atribuímos. Antes de 1789, Jefferson, por exemplo,
falava com muita frequência de “direitos naturais”. Começou
a usar o termo “direitos do homem” somente depois
de 1789. Quando empregava “direitos humanos”, queria
dizer algo mais passivo e menos político do que os direitos
naturais ou os direitos do homem. [...]
Ao sustentar que os africanos gozavam de direitos
humanos, Jefferson não tirava nenhuma ilação sobre os
escravos negros no país. Os direitos humanos, pela definição
de Jefferson, não capacitava os africanos – muito
menos os afro-americanos – a agir em seu próprio nome.
Durante o século XVIII, em inglês e em francês, os
termos “direitos humanos”, “direitos do gênero humano”
e “direitos da humanidade” se mostraram todos demasiado
gerais para servir ao emprego político direto.
Referiam-se antes ao que distinguia os humanos do
divino, numa ponta da escala, e dos animais, na outra,
do que a direitos politicamente relevantes como a liberdade
de expressão ou o direito de participar na política.
Assim, num dos empregos mais antigos (1734) de “direitos
da humanidade” em francês, o acerbo crítico literário
Nicolas Lenglet-Dufresnoy, ele próprio um padre católico,
satirizava “aqueles monges inimitáveis do século VI,
que renunciavam tão inteiramente a todos ‘os direitos
da humanidade’ que pastavam como animais e andavam
por toda parte completamente nus”. Da mesma
forma, em 1756, Voltaire podia proclamar com ironia
que a Pérsia era a monarquia em que mais desfrutava
dos “direitos da humanidade” porque os persas tinham
os maiores “recursos contra o tédio”. O termo “direito
humano” apareceu em francês pela primeira vez em 1763
significando algo semelhante a “direito natural”, mas não
pegou, apesar de ser usado por Voltaire no seu amplamente
influente Tratado sobre a tolerância.
Enquanto os ingleses continuaram a preferir “direitos
naturais” ou simplesmente “direitos” durante todo o
século XVIII, os franceses inventaram uma nova expressão
na década de 1760 – “direitos do homem” (droits de l’homme).
“O(s) direito(s) natural(is)” ou “a lei natural” (droit naturel tem
ambos os significados em francês) tinham histórias mais
longas que recuavam centenas de anos no passado, mas
talvez como consequência “o(s) direito(s) natural(is)” tinha
um número exagerado de possíveis significados. Às vezes
significava simplesmente fazer sentido dentro da ordem
tradicional. Assim, por exemplo, o bispo Bossuet, um porta-
-voz a favor da monarquia absoluta de Luís XIV, usou “direito
natural” somente ao descrever a entrada de Jesus Cristo no
céu (“ele entrou no céu pelo seu próprio direito natural”).
O termo “direitos do homem” começou a circular
em francês depois de sua aparição em O contrato social
(1762), de Jean-Jacques Rousseau, ainda que ele não desse
ao termo nenhuma definição e ainda que – ou talvez porque
– o usasse ao lado de “direitos da humanidade”, ”direitos
do cidadão” e “direitos da soberania”. [...]
Embora a peça não empregue de fato a expressão
precisa “os direitos do homem”, mas antes a relacionada
“direitos de nosso ser”, é claro que o termo havia entrado
no uso intelectual e estava de fato diretamente associado
com as obras de Rousseau. Outros escritores do Iluminismo,
como o barão D’Holbach, Raynal e Mercier, adotaram
a expressão nas décadas de 1770 e 1780.
Antes de 1789, “direitos do homem” tinha poucas incursões
no inglês. Mas a Revolução Americana incitou o marquês
de Condorcet, defensor do Iluminismo francês, a dar o
primeiro passo para definir “os direitos do homem”, que para
ele incluíam a segurança da pessoa, a segurança da propriedade,
a justiça imparcial e idônea e o direito de contribuir para
a formulação das leis. No seu ensaio de 1786, “De l’influence
de la révolution d’Amérique sur l’Europe”, Condorcet ligava
explicitamente os direitos do homem à Revolução Americana:
“O espetáculo de um grande povo em que os direitos
do homem são respeitados é útil para todos os outros, apesar
da diferença de clima, costumes e constituições”. A Declaração
da Independência americana, ele proclamava, era
nada menos que “uma exposição simples e sublime desses
direitos que são, ao mesmo tempo, tão sagrados e há tanto
tempo esquecidos”. Em janeiro de 1789, Emmanuel-Joseph
Sieyès usou a expressão no seu incendiário panfleto contra a
nobreza, O que é o Terceiro Estado?. O rascunho de uma declaração
dos direitos, feito por Lafayette em janeiro de 1789,
referia-se explicitamente aos “direitos do homem”, referência
também feita por Condorcet no seu próprio rascunho do início
de 1789. Desde a primavera de 1789 – isto é, mesmo antes da queda da Bastilha em 14 de julho – muitos debates sobre
a necessidade de uma declaração dos “direitos do homem”
permeavam os círculos políticos franceses.
Quando a linguagem dos direitos humanos apareceu,
na segunda metade do século XVIII, havia a princípio
pouca definição explícita desses direitos. Rousseau não ofereceu
nenhuma explicação quando usou o termo “direitos
do homem”. O jurista inglês William Blackstone os definiu
como “a liberdade natural da humanidade”, isto é, os “direitos
absolutos do homem, considerado como um agente livre,
dotado de discernimento para distinguir o bem do mal”. A
maioria daqueles que usavam a expressão nas décadas de
1770 e 1780 na França, como D’Holbach e Mirabeau, figuras
controversas do Iluminismo, referia-se aos direitos
do homem como se fossem óbvios e não necessitassem
de nenhuma justificação ou definição; eram, em outras
palavras, autoevidentes. D’Holbach argumentava, por
exemplo, que se os homens temessem menos a morte “os
direitos do homem seriam defendidos com mais ousadia”.
Mirabeau denunciava os seus perseguidores, que não
tinham “nem caráter nem alma, porque não têm absolutamente
nenhuma ideia dos direitos dos homens”. Ninguém
apresentou uma lista precisa desses direitos antes
de 1776 (a data da Declaração de Direitos da Virgínia
redigida por George Mason).
A ambiguidade dos direitos humanos foi percebida
pelo pastor calvinista Jean-Paul Rabaut Saint-Étienne,
que escreveu ao rei francês em 1787 para se queixar das
limitações de um projeto de edito de tolerância para protestantes
como ele próprio. Encorajado pelo sentimento
crescente em favor dos direitos do homem, Rabaut insistiu:
“sabemos hoje o que são os direitos naturais, e eles
certamente dão aos homens muito mais do que o edito
concede aos protestantes. [...] Chegou a hora em que não
é mais aceitável que uma lei invalide abertamente os direitos
da humanidade, que são muito bem conhecidos em
todo o mundo”. Talvez eles fossem bem conhecidos, mas o
próprio Rabaut admitia que um rei católico não podia sancionar
oficialmente o direito calvinista ao culto público.
Em suma, tudo dependia – como ainda depende – da
interpretação dada ao que não era “mais aceitável”.
[...]
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 20-24.
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