quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Os direitos humanos e “os direitos do homem”

    Uma breve incursão na história dos termos ajudará a fixar o momento do surgimento dos direitos humanos. As pessoas do século XVII não usavam frequentemente a expressão “direitos humanos” e, quando o faziam, em geral queriam dizer algo diferente do significado que hoje lhe atribuímos. Antes de 1789, Jefferson, por exemplo, falava com muita frequência de “direitos naturais”. Começou a usar o termo “direitos do homem” somente depois de 1789. Quando empregava “direitos humanos”, queria dizer algo mais passivo e menos político do que os direitos naturais ou os direitos do homem. [...] 
 
    Ao sustentar que os africanos gozavam de direitos humanos, Jefferson não tirava nenhuma ilação sobre os escravos negros no país. Os direitos humanos, pela definição de Jefferson, não capacitava os africanos – muito menos os afro-americanos – a agir em seu próprio nome. 
 
    Durante o século XVIII, em inglês e em francês, os termos “direitos humanos”, “direitos do gênero humano” e “direitos da humanidade” se mostraram todos demasiado gerais para servir ao emprego político direto. Referiam-se antes ao que distinguia os humanos do divino, numa ponta da escala, e dos animais, na outra, do que a direitos politicamente relevantes como a liberdade de expressão ou o direito de participar na política. Assim, num dos empregos mais antigos (1734) de “direitos da humanidade” em francês, o acerbo crítico literário Nicolas Lenglet-Dufresnoy, ele próprio um padre católico, satirizava “aqueles monges inimitáveis do século VI, que renunciavam tão inteiramente a todos ‘os direitos da humanidade’ que pastavam como animais e andavam por toda parte completamente nus”. Da mesma forma, em 1756, Voltaire podia proclamar com ironia que a Pérsia era a monarquia em que mais desfrutava dos “direitos da humanidade” porque os persas tinham os maiores “recursos contra o tédio”. O termo “direito humano” apareceu em francês pela primeira vez em 1763 significando algo semelhante a “direito natural”, mas não pegou, apesar de ser usado por Voltaire no seu amplamente influente Tratado sobre a tolerância
 
    Enquanto os ingleses continuaram a preferir “direitos naturais” ou simplesmente “direitos” durante todo o século XVIII, os franceses inventaram uma nova expressão na década de 1760 – “direitos do homem” (droits de l’homme). “O(s) direito(s) natural(is)” ou “a lei natural” (droit naturel tem ambos os significados em francês) tinham histórias mais longas que recuavam centenas de anos no passado, mas talvez como consequência “o(s) direito(s) natural(is)” tinha um número exagerado de possíveis significados. Às vezes significava simplesmente fazer sentido dentro da ordem tradicional. Assim, por exemplo, o bispo Bossuet, um porta- -voz a favor da monarquia absoluta de Luís XIV, usou “direito natural” somente ao descrever a entrada de Jesus Cristo no céu (“ele entrou no céu pelo seu próprio direito natural”). 
 
    O termo “direitos do homem” começou a circular em francês depois de sua aparição em O contrato social (1762), de Jean-Jacques Rousseau, ainda que ele não desse ao termo nenhuma definição e ainda que – ou talvez porque – o usasse ao lado de “direitos da humanidade”, ”direitos do cidadão” e “direitos da soberania”. [...] 
 
    Embora a peça não empregue de fato a expressão precisa “os direitos do homem”, mas antes a relacionada “direitos de nosso ser”, é claro que o termo havia entrado no uso intelectual e estava de fato diretamente associado com as obras de Rousseau. Outros escritores do Iluminismo, como o barão D’Holbach, Raynal e Mercier, adotaram a expressão nas décadas de 1770 e 1780. 
 
    Antes de 1789, “direitos do homem” tinha poucas incursões no inglês. Mas a Revolução Americana incitou o marquês de Condorcet, defensor do Iluminismo francês, a dar o primeiro passo para definir “os direitos do homem”, que para ele incluíam a segurança da pessoa, a segurança da propriedade, a justiça imparcial e idônea e o direito de contribuir para a formulação das leis. No seu ensaio de 1786, “De l’influence de la révolution d’Amérique sur l’Europe”, Condorcet ligava explicitamente os direitos do homem à Revolução Americana: “O espetáculo de um grande povo em que os direitos do homem são respeitados é útil para todos os outros, apesar da diferença de clima, costumes e constituições”. A Declaração da Independência americana, ele proclamava, era nada menos que “uma exposição simples e sublime desses direitos que são, ao mesmo tempo, tão sagrados e há tanto tempo esquecidos”. Em janeiro de 1789, Emmanuel-Joseph Sieyès usou a expressão no seu incendiário panfleto contra a nobreza, O que é o Terceiro Estado?. O rascunho de uma declaração dos direitos, feito por Lafayette em janeiro de 1789, referia-se explicitamente aos “direitos do homem”, referência também feita por Condorcet no seu próprio rascunho do início de 1789. Desde a primavera de 1789 – isto é, mesmo antes da queda da Bastilha em 14 de julho – muitos debates sobre a necessidade de uma declaração dos “direitos do homem” permeavam os círculos políticos franceses. 
 
    Quando a linguagem dos direitos humanos apareceu, na segunda metade do século XVIII, havia a princípio pouca definição explícita desses direitos. Rousseau não ofereceu nenhuma explicação quando usou o termo “direitos do homem”. O jurista inglês William Blackstone os definiu como “a liberdade natural da humanidade”, isto é, os “direitos absolutos do homem, considerado como um agente livre, dotado de discernimento para distinguir o bem do mal”. A maioria daqueles que usavam a expressão nas décadas de 1770 e 1780 na França, como D’Holbach e Mirabeau, figuras controversas do Iluminismo, referia-se aos direitos do homem como se fossem óbvios e não necessitassem de nenhuma justificação ou definição; eram, em outras palavras, autoevidentes. D’Holbach argumentava, por exemplo, que se os homens temessem menos a morte “os direitos do homem seriam defendidos com mais ousadia”. Mirabeau denunciava os seus perseguidores, que não tinham “nem caráter nem alma, porque não têm absolutamente nenhuma ideia dos direitos dos homens”. Ninguém apresentou uma lista precisa desses direitos antes de 1776 (a data da Declaração de Direitos da Virgínia redigida por George Mason). 
 
    A ambiguidade dos direitos humanos foi percebida pelo pastor calvinista Jean-Paul Rabaut Saint-Étienne, que escreveu ao rei francês em 1787 para se queixar das limitações de um projeto de edito de tolerância para protestantes como ele próprio. Encorajado pelo sentimento crescente em favor dos direitos do homem, Rabaut insistiu: “sabemos hoje o que são os direitos naturais, e eles certamente dão aos homens muito mais do que o edito concede aos protestantes. [...] Chegou a hora em que não é mais aceitável que uma lei invalide abertamente os direitos da humanidade, que são muito bem conhecidos em todo o mundo”. Talvez eles fossem bem conhecidos, mas o próprio Rabaut admitia que um rei católico não podia sancionar oficialmente o direito calvinista ao culto público. Em suma, tudo dependia – como ainda depende – da interpretação dada ao que não era “mais aceitável”. [...] 
 
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 20-24.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

A lição da temível banalidade do mal


    A situação era tão simples quanto desesperada: a esmagadora maioria do povo alemão acreditava em Hitler [...]. O problema de Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas. [...] Sua consciência ficou efetivamente tranquila quando ele viu o zelo e o empenho com que a “boa sociedade” de todas as partes reagia ao que ele fazia. [...] A lição da temível banalidade do mal, [...] desafia as palavras e o pensamento. [...] Nenhum castigo jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração de crimes. Ao contrário, a despeito do castigo, uma vez que um crime específico apareceu pela primeira vez, sua reaparição é mais provável do que poderia ter sido a sua emergência inicial. 
 
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 114, 143, 274, 295-299. Adaptado.

Sobre o racismo

    Se o racismo, faz tempo, deixou de ser aceito como uma teoria científica, ele continua plenamente atuante, enquanto ideologia social, na poderosa “teoria do senso comum”, aquela que age perversamente no silêncio e na conivência do dia a dia. A escravidão nos legou uma sociedade autoritária, a qual tratamos de reproduzir em termos modernos. Uma sociedade acostumada com hierarquias de mando, que usa de uma determinada história mítica do passado para justificar o presente, e que lida muito mal com a ideia da igualdade na divisão de deveres mas dos direitos também. 
 
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 32-33.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Duna

    "Duna" é sensacional! Eu poderia simplesmente dizer apenas isso e já seria suficiente para expressar o meu sentimento a produção cinematográfica, o filme do diretor Denis Villeneuve, 2021. No entanto, preciso dizer mais. Não vou fazer uma crítica em relação a produção em si, ou ao filme enquanto produto cultural, nem mesmo dados técnicos e ideológicos do filme. A minha análise é sobre o que eu senti ao assistir o filme no cinema. Havia em mim uma grande expectativa. Afinal, desde a trágica adaptação de 1984 da obra de Frank Herbert eu não acreditava que fosse possível fazer uma obra a altura de Duna que lemos na obra literária. 

No entanto, as imagens que meus olhos vislumbraram na tela, os sons impressionantes de Hans Zimmer (será que é por isso que gosto tanto de Rei Arthur e Batman, Cavaleiro das Trevas?) me tiraram do chão e eu viajei na mente fantástica de Frank Herbert. Duna é visualmente fantástica. Duna é impressionante enquanto produção cinematográfica. Duna é magnífico em termos de captar a nossa atenção. 

    Mas, na minha opinião, Duna nos faz pensar sobre o ser humano. Pode passar o tempo que passar (afinal Duna se passa no ano 10 mil, depois da Jihad Butleriana), o ser humano continua sendo egoísta, explorador da miséria alheia, ganancioso e violento. Se conseguir conquistar outros mundos irá tirar tudo o que lhe interessa e descartar o resto. A jornada do Herói é o que importa. Sempre haverá uma válvula de escape. Sempre haverá alguém que irá fazer o bem. Pessoas boas sofrem, são perseguidas e maltratadas, mas vencem. 

    O triunfo da vontade sobre a maldade humana é o ponto chave. Nem mesmo os grandes vermes podem impedir a nossa jornada. Nem a solidão do deserto. A vitória será alcançada se não desistirmos de lutar por ela. Duna é, ao meu ver, um novo clássico que, volta e meia, estarei assistindo. 

Reflexão: Odair José, Poeta Cacerense