quarta-feira, 6 de abril de 2016

A representação da vida (ou a negação do real) em David Gale de Alan Parker


Por Rogério Almeida

O sentido da vida... Antes de começar este artigo, uma breve advertência: não o leia caso não tenha assistido ao filme. É uma advertência um tanto quanto óbvia, afinal a quem interessaria ler uma reflexão sobre uma obra que não se conhece? No entanto, muitas vezes traídos pela curiosidade, somos levados a querer conhecer mais, prontos a nos deixar seduzir pelo duplo sem conhecer a obra sobre a qual o duplo se constrói. Ou, então, o que me parece pior, queremos a opinião da crítica para saber se vale à pena ou não assistir ao filme e o que esperar dele. Frustrarei certamente a estes espíritos curiosos, pois inicio minha análise pelo final do filme. Portanto, leitor curioso, vá ao filme primeiro e, depois, se ainda restar ânimo à curiosidade, convido-o à leitura.

Feita a ressalva, recomecemos com o axioma: o sentido da vida é dado pela morte. Ou talvez o destino o seja. O fato é que a morte vem revelar, quando já não há mais vida, quem era o vivo. Mas qual o sentido revelado? É sempre uma representação, nunca uma verdade. É isso o que nos ensinou, por exemplo, as memórias de Brás Cubas, aquelas criadas por Machado e representadas pelo defunto autor. E por que deixar a um morto a narração da própria vida? Porque somente perdendo-a é que se ganha a isenção necessária para julgá-la. E o seu destino então nos é dado. Não como verdade, repito, mas como representação. É essa representação do sentido da vida que a morte de David Gale (Kevin Spacey) nos oferece. Mas qual morte? A representada pela fita cassete guardada pelo caubói e divulgada pela televisão? Ou a que a jornalista Bitsey Bloom (Kate Winslet) e nós assistimos um pouco depois, quando o filme termina?

A cena é pungente: no auge do thriller, Bitsey chega com a fita que inocenta David Gale, mas é tarde demais. Ele já foi morto pelo sistema carcerário. A fita é prova cabal de sua inocência. Mostra Constance (Laura Linney), amiga de Gale, a quem ele teria assassinado, cometendo o suicídio. Logo, se não houve assassinato, não houve assassino. Condenou-se, então, um inocente. Era disto o que os ativistas contra a pena de morte precisavam para reaquecer o debate sobre a pena capital e pedir sua reavaliação: se o sistema é falho, não pode ser aplicado, sob risco de se assassinar um inocente.

Acompanhamos o decorrer do escândalo, as declarações das autoridades, da opinião pública, a movimentação dos jornalistas, a dor de Bitsey Bloom... O sentido da vida de Gale nos é, pela primeira vez, representado. Inocente, morreu injustamente, longe do filho que amava. Imaginamos que tudo teria sido evitado se Constance não se suicidasse, se tivesse um pouco de paciência e esperasse que a leucemia desse fim à sua vida. De alguma forma, ela foi culpada não só pela própria morte, mas também pela de David Gale, que morreu por supostamente tê-la matado. Mas se a fita veio à tona, então alguém filmou seu suicídio e escondeu a prova da inocência de Gale. Esse alguém é o caubói, em cuja casa Bitsey encontrou a fita. Qual sua motivação? Idealismo. Por ser ativista contra a pena capital, a morte de um inocente seria o ideal para a causa que defendiam: a extinção da pena de morte. Seguindo o raciocínio, podemos inocentar Constance, que não teria a intenção de, com seu suicídio, matar um inocente, mas, com a gravação da fita, revelar essa inocência a tempo de poupar essa vida. Mas se a vida do inocente fosse poupada, o sistema continuaria defendendo a pena de morte por nunca um inocente ter sido punido injustamente. Então o caubói é culpado pela morte de Gale. Depreendemos que sua atitude é extremada, afinal deixar o amigo de Constance morrer para defender a sua causa é falta de altruísmo, de senso de justiça, ou seja, egoísmo. Ou fanatismo. Ou ainda loucura, como é sugerido ao longo do filme. Teria ele agido assim por amor a Constance?

Mas então surge uma nova fita e o segundo sentido da vida de Gale nos é representado. Para apaziguar a dor moral de Bitsey Bloom, que descobriu a verdade quando ela era quase inútil (assim como nós espectadores), afinal não foi possível evitar a morte de David, eis que o defunto havia tramado para que ela recebesse uma fita com uma nova informação. Nessa segunda vida, vemos que David Gale assistiu Constance em seu suicídio, tramou com ela o auto-sacrifício de ambos. Não foi ele que a matou. Ela se suicidou. Não foi ela, nem o caubói, nem o sistema, que matou Gale, foi ele que se deixou morrer. Então sua morte assume o caráter de martírio. David Gale foi um mártir. Ninguém sabe disso, somente nós, espectadores, e Bitsey. Que altivez! Morrer para matar a morte! Se suas vidas não foram em vão, se a causa que defendiam não era vã, se suas mortes têm algum sentido, é o do altruísmo, do dever moral levado à última conseqüência, da compaixão em seu ápice. Morreram por uma causa nobre, para que a pena de morte não continue matando quem mata, sob o risco de matar um inocente.


Representação! 

Nada nos impede de ver a morte de David Gale como hipócrita. A dele e a de Constance. Em primeiro lugar, porque eles representam o tempo todo. Ela representa-se como vítima, ele como inocente. Constance assassina-se. David é o cúmplice. Não bastasse essa culpa, David carrega ainda nove anos de mentira: não se defendeu adequadamente, escondeu provas, testemunhou em falso, manipulou a jornalista (e nós, espectadores, que olhamos para David com os olhos dela), e, o mais grave, provou sua inocência quando já não podia usufruir dela. E qual o motivo disso tudo? A representação de sua morte era infinitamente mais eloqüente que sua vida. Vivo, já não havia o que dizer, nem como dizer, nem ninguém que o ouvisse. Morto, sua inocência encenada fala por todas as inocências, as reais, se é que de fato alguma houve, e as possíveis: como saber se o sistema não falhou antes? Ou não falhará depois?

A discussão que o filme quer propor é a da pena de morte, se deve ou não ser aplicada. Mas não há como discutir, a partir do filme e no âmbito filosófico, essa questão. Por mais que o roteirista Charles Randolph, aliás, filósofo como o protagonista, desejasse levantar o debate, o fato é que David Gale não morre, como parece, para provar que o sistema é falho e, assim, cumprir seu destino de mártir e salvar os futuros condenados da desumanidade do sistema judiciário. Gale morre para resgatar sua imagem perante o filho, que foi afastado do pai pela ex-esposa e vive na distante Espanha. Morre também para provar ao Governador – que o desafiara em um debate transmitido pela TV a apontar um único inocente que tenha sido executado – que este estava errado. Morre também para comprovar os pressupostos de Lacan, o qual, nas palavras de uma aula ministrada por Gale (logo no início do filme), defendia que “viver de desejo não traz felicidade, pois o verdadeiro significado do ser humano é a luta para viver por idéias e ideais.” Morre, enfim, por sua amiga Constance, para lhe provar que não era egoísta e que partilhava das mesmas causas que ela, até o ponto do sacrifício.

Mas o fato é que Gale, a se tomar como verdadeiras as motivações relacionadas, está mais inclinado a morrer por uma causa egoísta do que altruísta. Se todos os pontos mencionados parecem altruístas, e de fato o são, estão também relacionados à impotência da personagem, ou melhor, ao fracasso de sua vida. Vivo, vale muito pouco; pode quase nada: não há como rever, nem mesmo falar, com o filho; não há mais como contar com o apoio de Constance, paciente terminal de leucemia; não há sequer como conseguir emprego. Para piorar, é alcoólatra e não consegue vencer o vício. Derrotado em todas as frentes, embora de uma inteligência privilegiada, jogar com a morte (a de Constance e depois a sua), e optar até o final pelo jogo, é a única maneira de representar um sentido para a sua vida e resgatar sua imagem: perante a sociedade, é a vítima (morreu sendo inocente); perante seu filho é o herói (provou sua inocência); perante o governador, é o vencedor (apontou um inocente injustamente punido com a morte)... Mas, e perante a jornalista? Ficamos com as suas lágrimas de compaixão e espanto. Podemos arriscar traduzi-las em palavras: ele sabia! – diriam as lágrimas – ele sabia!

A compaixão da jornalista, arrisquemos, se deve antes pela vida mal vivida de Gale que por sua morte. Lamentamos quando a morte vem cedo, porque seqüestra uma porção de tempo, rouba todas as possibilidades de devir, toda a potência da vida. Mas que poder tinha a vida de Gale? Longe da família, principalmente do filho, longe do trabalho, principalmente a docência, longe de Constance, leucêmica terminal, com uma acusação, essa sim injusta, de estupro, envolto com os problemas do alcoolismo, o que podia fazer David Gale de sua vida?

Lembremos ainda da referência a Lacan que Gale faz em sala de aula, ensinando aos alunos que não deveriam “medir a vida por aquilo que obtiveram em termos de desejos, mas pelos momentos de integridade, compaixão, racionalidade e até auto-sacrifício. Porque, no final, a única forma de medir o significado de nossas vidas é valorizando a vida dos outros.” Palavras proféticas que explicam seu gesto final: para valorizar sua própria vida, representa sua morte em nome da valorização da vida dos outros. Eis a genealogia de seu altruísmo egoísta ou de seu egoísmo altruísta.

“(...) para se ‘sacrificar’, ainda é preciso viver. Para que eu possa ‘me sacrificar’, de graça, deixem algo para mim, um último sopro de vida, algumas migalhas de existência, um quase-nada; (...) não há nada que sacrificar quando não temos nada a perder” (Jankélévitch, 1991: 145). Gale sacrifica não seu ser, mas seu resto de ser, seu mínimo ser, para ganhar a redenção de sua reputação.

E isso, assinale-se, não é nenhum mérito de nossa sociedade ocidental moderna, que prima por valores humanitários de base racionalista, hierarquizada e etnocêntrica. Com Malinowski (2003: 74; 76), analisando as tribos da Melanésia, compreendemos que a razão do suicídio, entre os selvagens ou primitivos, revela uma atitude mental “um tanto complexa – abrange o desejo de autopunição, vingança, reabilitação e queixa sentimental. (...) A pessoa publicamente acusada admite sua culpa, assume todas as conseqüências, castiga o próprio corpo, mas ao mesmo tempo declara ter sido aviltada, apela aos sentimentos dos que a levaram a esse extremo.” Em outras palavras, é uma meio de fuga e reabilitação.

No caso de David Gale, não é diferente, sua motivação autopunitiva é também uma forma de vingança, de queixa sentimental e, principalmente, de reabilitação. No final, não há como dizer que sua morte foi por ideais, mas por orgulho intelectual: a escolha da melhor saída para representar-se como herói.

O filme, em última instância, revela a impossibilidade de os personagens conviverem com o real, de aceitá-lo. O mundo, tal qual se apresenta ordenado socialmente, tornou-se um simulacro em que tudo é representação. A morte de Constance é reproduzida para e pelo vídeo: no primeiro, sem David Gale (o que prova sua inocência); o segundo com David Gale (o que anula sua inocência sem mostrá-lo culpado). Sua última aparição no filme, por meio da fita de vídeo entregue a Bitsey, ocorre quando ele já está morto; no entanto, vemos a reprodução de sua imagem, como a zombar de nossa ignorância, pronta para destituir o sentido de sua vida (poderia dizer de sua morte) e substituí-lo por outro. No fundo, a proliferação de sentidos simulados mostra justamente seu contrário: a ausência de sentidos, tanto para a vida como para a morte.

Segundo Baudrillard (1990), vivemos na pós-orgia. Todas as liberações já ocorreram. Estamos libertos das ideologias, da política, da revolução, da utopia. Não há mais ideais, apenas a representação desses ideais que, por sua vez, eram representações metafísicas que davam um sentido à existência. Não há mais ideais, eles não motivam, não impulsionam, não são fortes o bastante para justificar uma morte ou dar sentido a uma existência. O que restou é uma simulação, uma pálida representação do que um dia significaram. Por isso é importante que, para além do ideal antipena de morte, víssemos as motivações pessoais de cada um: Constance tentava salvar as vidas dos condenados, já que não podia salvar a sua própria. Gale representa sua inocência para seu filho, limpando de seu passado qualquer culpa. O paradoxal é que levou injustamente a culpa por um estupro que não cometeu, que foi simulado, e, quando era culpado (não da morte de Constance, mas da trama que a envolveu), morreu como inocente. O fato importa pouco, o que conta é a representação.

No final das contas, ninguém está errado e a verdade não está do lado de nenhuma representação. Pouco importa defender ou atacar a pena de morte, o que vale é saber representá-la, tanto a pena quanto a morte, pois é esta, com seu ponto final, que propiciará a representação de um sentido para vida. E mesmo que esse sentido seja a negação do real, a sua substituição, não há muito que fazer. Diante do pouco que o real e a existência nos oferecem, duas podem ser as saídas: uma é negá-lo, como fez todos os personagens do filme; a outra é, a partir da constatação do trágico da existência, afirmar, incondicionalmente diria Nietzsche, esse real. E, então, vivê-lo!

Referências Bibliográficas 

BAUDRILARD, Jean. A Transparência do Mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas, Papirus, 1990.
JANKÉLÉVITCH, Vladimir. O Paradoxo da Moral. Campinas, Papirus, 1991.
MALINOWSKI, Bronislaw. Crime e Costume na Sociedade Selvagem. Brasília / São Paulo, UnB / Imprensa Oficial do Estado, 2003.

Rogério de Almeida é professor da FIZO, doutorando em Educação pela USP, poeta e escritor, autor, entre outros, de O Dia em que Conheci Jim Morrison.

Fonte: http://www.cinequanon.art.br/ensaios_detalhe.php?id=1

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